Perdido na Noite

Quando chegou ao Brasil, Antônio Astolfi recebeu um lote na Linha Zamith na Colônia Dona Izabel, que é hoje Bento Gonçalves. Passados alguns anos, ouviu falar de uma nova colônia, mais ao norte, de terras boas e promissoras. Era a colônia de Guaporé, que estava recebendo seus primeiros moradores. Antônio foi verificar in loco a veracidade das informações e, satisfeito, comprou o lote de número 33 da Linha Colombo, distante dez quilômetros da vila. Com seu irmão Luís, abriu uma clareira na mata e lá construiu a moradia. Pensava em transferir logo a família para a nova casa, mas a revolução Federalista (1883-1885) atrapalhou os planos de Astolfi, e a mudança para a Linha Colombo só foi possível após o término da revolução.

Foi nesse lugar que aconteceu a história que nosso pai José Astolfi (Bepi) contava, cujo personagem fora ele mesmo aos nove anos de idade.
A vida seguia seu curso e uma bela manhã, o pequeno José, chamado por todos de Bepi, teve uma oferta tentadora de seu futuro cunhado, que estava lá em visita a sua noiva Eugênia:

– Eu te dou um tostão, se cuidares do meu cavalo para que não se afaste muito da casa.

Para os nove anos de Bepi, uma moeda significava muito, era uma fortuna. A tarefa não era difícil. O menino até poderia se ocupar com alguma distração, enquanto o cavalo mordiscava o capim a sua volta. Porém, em dado momento, Bepi percebeu que o cavalo estava muito próximo à orla do mato. Correu e tentou mudar-lhe o rumo. Inútil. O animal, percebendo a intenção do menino, mais se afastou, embrenhando-se na mata.

Bepi seguia-o, chamando o animal pelo nome, na tentativa de trazê-lo de volta, mas via-o distanciar-se cada vez mais, até perdê-lo de vista. Aflito, procurava o fujão, sem perceber que o mato fechava-se cada vez mais em torno dele.

Sentiu que deveria desistir e retornar a casa, mas
deu-se conta de que não havia caminho e nem mesmo sabia
que direção tomar. Agora, o cavalo já não importava, Bepi
só queria a sair da mata, queria sua casa, mas cada passo o
levava cada vez mais longe dela. Bepi estava perdido.

 

Retornemos à casa dos Astolfi: Bepi não aparecia, nem o cavalo. Bepi não respondia ao chamado da mãe e dos irmãos; todos foram tomados de angústia e apreensão. Aguardaram algum tempo, na esperança de um retorno, mas nada acontecia. O pai estava ausente, fora à vila de manhã cedo e só retornaria à noite. Foram avisados os vizinhos mais próximos, que começaram as buscas mato adentro, em direções diferentes. Ao anoitecer, voltaram desanimados. Retomariam as buscas na manhã seguinte, dessa vez, em companhia do pai do menino que estava retornando da vila.

Bepi buscava uma saída. Como era difícil caminhar naquela escuridão verde. Árvores grandiosas, com sua ramagem, escondiam o céu. Cipós, pedras, espinhos, buracos, formigueiros atrapalhavam-lhe os passos. Outras pedras muito grandes e troncos enormes, deitados entre galhos apodrecidos, obrigavam-no a dar voltas. Vozes e ruídos estranhos, de pássaros e de pequenos animais em fuga amedrontavam-no. Sentiu fome e sede. Quanto tempo já havia passado? Sabia que era preciso andar, andar, encontrar a casa. Os pés, que não estavam calçados, sangravam; as pernas, cansadas e feridas pelos espinhos, doíam; tinha as mãos e os braços machucados de tanto afastar os galhos e cipós que dificultavam a passagem. Havia ainda o medo do tigre e do leão baio de que tanto ouvira falar. E o escuro da mata a cair sobre ele. Mas continuou sua busca.

De repente, percebeu uma claridade. Foi em sua direção e viu, através da ramagem, o sol. Mais alguns passos e ouviu vozes que vinham de um rancho. Parou e ficou atento. Viu que era a moradia de “brasileiros”. Teve medo, Não, não se aproximaria. Ele não sabia falar aquela língua estranha, e aquela gente não era a gente dele. Frustrado e triste voltou a caminhar. De novo a fome, a sede e o cansaço. Mais espinhos a ferir-lhe os pés e obstáculos a contornar. E as picadas dos insetos. O pensamento levava-o para junto da mãe, das irmãs e dos irmãos, da casa. Quanto ainda deveria andar até encontrá-los? E o pai, o que diria quando soubesse do seu desaparecimento?

Então, de novo a claridade. Eram os últimos raios do sol que e perpassavam deitados por entre os troncos das árvores. Sentiu o calor daqueles raios tocar-lhe o rosto. Ao mesmo tempo ouviu vozes de crianças. Cauteloso, aproximou-se e escutou. Sim, eram palavras iguais as da sua casa o que ele ouvia. Mais confiante, saiu do mato e foi em direção daquelas vozes. Estacou diante de algumas crianças que brincavam na porta da casa e que, tão espantadas quanto ele, ficaram em silêncio diante daquela aparição. Foi então acolhido pelos braços de uma mulher que bondosamente o lavou e cuidou de seus ferimentos. Bepi bebeu água, foi alimentado e dormiu rodeado de anjos. Terminava o
pesadelo que ensinou a um menino valente ser mais forte ainda, diante das dificuldades da vida.

Quando o pai daquela família que acolheu o Bepi, chegou em casa naquela noite, na Linha Felix da Cunha, viu aquele menino no mais profundo sono. Soube então pela mulher o nome e como havia chegado até ali. Surpreso ele falou:

– Eu passei a tarde com o pai desse menino e retornei da cidade com ele até a Linha Colombo!

Na manhã seguinte, antes do nascer do sol, os homens da vizinhança estavam novamente reunidos. Em grupos diferentes, em seus cavalos, reiniciaram a tarefa triste de encontrar o menino perdido. Buscariam sinais de sua passagem pela mata e, pelas picadas, chegariam à casa dos colonos mais distantes, na esperança de que alguém o tivesse acolhido. Uma senha, todavia, foi acertada antes da partida: se encontrassem o menino vivo, dois tiros seriam disparados com breve intervalo de tempo. Se morto, um tiro apenas.

Assim, algumas horas depois, lá pelas bandas da Linha Felix da Cunha, não distante de Dois Lajeados, o grupo liderado por Antônio Astolfi, chega à casa do colono que havia abrigado seu filho.

O abraço do pai, risos de alegria, perguntas, agradecimentos a Deus e àquela família. Passados os momentos de maior emoção, conforme combinado, rompendo o silêncio da mata, ecoou o primeiro tiro de espingarda e, após alguns instantes, o segundo tiro, que anunciava a vitória da vida.

Em casa dos Astolfi, a angústia da espera sufocava os corações. Mãe e irmãs, ocupadas com as tarefas da casa, mantinham-se em oração. Onde estaria o filho, o irmãozinho? Vivo na casa de alguém, esperando para ser resgatado ou, quem sabe, dormindo sob uma árvore, guardado por seu anjo que o guiaria até em casa no início da manhã? E se estivesse morto por obra de algum animal do mato? Não, isso não! Tantas orações iam devolver-lhes o menino.

No meio da manhã, Eugênia, irmã de Bepi, estava no pátio, ocupada em rachar lenha para o fogão. Concentrada na sua dor e na esperança de um milagre ouviu o primeiro tiro chegar de muito longe. Paralisada, aguardou alguns segundos e, ao eco do segundo tiro, largou o machado e entrou em casa aos prantos, chamando pela mãe e aos gritos de Vivo! Vivo! Ele está vivo!

E Bepi, nosso pai, que se transformava em menino ao contar e recontar esse episódio de sua vida, concluía seu relato, dizendo-nos que, naquele dia, seu pai premiou-o generosamente com duas rapaduras, um fato, por si só, fora do comum, e mais, as duas rapaduras, ele poderia comê-las sozinho, sem precisar reparti-las com os irmãos menores. Essa foi a maneira do nosso nono Antônio Astolfi demonstrar sua felicidade por ter encontrado o menino e de expressar sua admiração pela coragem por ele demonstrada na travessia da mata em busca de sua casa.

Esta história, como tantas outras, foi transmitida de geração para geração, e a nós chegou através das lembranças de Maria Astolfi e Zélia Astolfi Camerini, filhas de José Astolfi.

Para nós, crianças, que não nos cansávamos de ouvir sua história, reconhecíamos, naquele menino perdido na mata, o nosso pai, em quem depositávamos uma fé incondicional – a fé de que o pai poderia vencer qualquer perigo, de que nada poderia nos fazer mal se ele estivesse perto. Sua mão transmitia-nos uma confiança absoluta. Ponderado diante dos problemas, mas corajoso e determinado na travessia de etapas difíceis, a ele devotamos sempre uma mensurável e hoje eterna admiração.

Esta história tem um epílogo. E é a filha de José Astolfi (Bepi), Zélia Astolfi Camerini que o conta.

Cabe-me concluir o relato dessa aventura que o papai viveu na sua infância, contando um fato que ocorreu muitos anos depois, quando ele já era adulto, casado e pai de família, sendo que eu, sua filha mais velha, o presenciei. Foi na época em que a mamãe estava em tratamento de saúde em Porto Alegre, entre fins de 1933 e início de 1934. Em uma manhã estávamos na loja onde o papai estava me ensinando a fazer lançamentos no borrador, já que muitas vezes eu deveria ficar ajudando na loja. Uma senhora que havia chegado a cavalo, entrou cumprimentando:

– Bom Giorno!

Papai levantou os olhos para a pessoa ao retribuir o cumprimento e, surpreso, logo a reconheceu. Sorriram um para o outro emocionados e papai então me disse:

– Vês esta senhora? Foi na casa dela que eu cheguei quando estava perdido no mato. Ela me cuidou e me alimentou.

Conversaram um pouco, ela fez algumas compras e se despediram ainda tomados pelo sentimento do encontro e as lembranças despertadas.

O que jamais esqueci daquele momento foi o olhar de surpresa do papai e a expressão de alegria daquela senhora, o que confirmava para mim depois de tanto ouvi-lo contar a história, que um fato dramático, de intensa emoção e –, ainda bem –, de resultado feliz, para ambos um dia se passara.

Fim.